Registro Nacional de Autismo nos Estados Unidos: entre o avanço da pesquisa e a proteção dos direitos individuais 2cr6o
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Polêmica recente reforça a necessidade de transparência, ética e participação ativa da comunidade autista nas decisões sobre dados pessoais

Recentemente, a comunidade do autismo e os ativistas pelos direitos das pessoas com deficiência nos EUA aram por um debate intenso e decisivo. A proposta do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS), por meio do National Institutes of Health (NIH), de criar um sistema nacional de dados sobre o autismo — inicialmente apresentado como um “registro” que poderia usar registros médicos privados sem consentimento explícito — levantou um grande alerta. A notícia, divulgada inicialmente pela CBS News e amplamente debatida, gerou preocupação entre pesquisadores, especialistas em ética e, principalmente, entre as pessoas autistas e suas famílias.
Embora o HHS tenha posteriormente abandonado a ideia do “registro” conforme foi inicialmente entendido, anunciando em seu lugar o desenvolvimento de uma “plataforma de dados do mundo real” para pesquisas — com a garantia de não monitorar pacientes individualmente sem consentimento — a preocupação entre os defensores dos direitos continua. Esse episódio evidencia um dilema central: como avançar na pesquisa e no entendimento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) para beneficiar a comunidade, sem comprometer direitos fundamentais como a privacidade, o consentimento e a dignidade de cada indivíduo?
A ideia de criar um banco de dados nacional sobre o autismo, embora tenha objetivos nobres de pesquisa, traz consigo um peso ético e social que não pode ser ignorado. As preocupações levantadas por dezenas de grupos de direitos civis e organizações de pessoas com deficiência, como a Autistic Self Advocacy Network, são legítimas e refletem um histórico complexo.
O uso de registros médicos privados sem o consentimento expresso e esclarecido dos indivíduos ou de seus responsáveis legais viola princípios éticos fundamentais. Em qualquer pesquisa envolvendo seres humanos — especialmente em populações que podem ter dificuldades de comunicação ou compreensão — o consentimento não é apenas uma formalidade, mas a garantia do respeito à autonomia e independência de cada pessoa. A possibilidade de dados sensíveis serem coletados, mesmo que depois anonimizados para uso em uma “plataforma”, sem o conhecimento ou permissão prévia, é profundamente preocupante.
Um dos principais receios é que, mesmo com fins científicos, um registro centralizado possa gerar estigmatização. A história mostra que a coleta massiva de dados sobre grupos específicos, especialmente relacionados à saúde ou deficiência, pode criar precedentes perigosos, expondo os indivíduos a riscos de discriminação em áreas como oportunidades de emprego ou mesmo no convívio social.
Mesmo após o recuo do HHS em favor de uma “plataforma de dados”, a falta de clareza inicial sobre os objetivos e os mecanismos de controle de um sistema tão abrangente gera desconfiança. Quem pode garantir que esses dados serão usados adequadamente a longo prazo? Quais proteções existem contra o uso indevido ou o cruzamento de informações para finalidades não autorizadas?
O papel da inclusão e da representatividade: “Nada sobre nós, sem nós” 5p1a15
Este episódio nos Estados Unidos reforça, mais uma vez, a importância fundamental do princípio “Nada sobre nós, sem nós”. Toda iniciativa — seja em pesquisa, políticas públicas ou desenvolvimento de serviços — que impacte diretamente a vida das pessoas autistas deve incluir sua participação ativa e genuína em todas as etapas, desde a concepção até a implementação e avaliação.
A comunidade autista — incluindo pessoas autistas autodefensores, suas famílias e organizações representativas — detém um conhecimento vivido e uma perspectiva insubstituível. Suas vozes não podem ser apenas consultadas formalmente; devem ser integradas de forma decisória no planejamento de qualquer coleta de dados ou estudo. Isso garante que as prioridades da pesquisa reflitam as necessidades reais da comunidade, como o desenvolvimento de es que promovam qualidade de vida, autonomia e independência, e não apenas investigações baseadas em uma visão puramente médica ou focadas na “cura” ou “eliminação” do autismo — perspectivas frequentemente rejeitadas pela própria comunidade.
Entre as boas práticas estão a formação de conselhos consultivos compostos majoritariamente por pessoas autistas e seus familiares e a comunicação dos resultados em linguagem ível. É fundamental que os benefícios das pesquisas retornem diretamente à comunidade. A transparência total sobre como os dados serão coletados, armazenados, utilizados e protegidos é inegociável.
Avançar com ética, respeito e participação w2d27
O desejo de compreender melhor o autismo e desenvolver es mais eficazes é legítimo e necessário. Quando conduzida de forma ética e participativa, a pesquisa se torna uma aliada poderosa. Porém, mesmo com objetivos nobres, não se justificam práticas que violem direitos fundamentais ou excluam a voz e a participação das pessoas diretamente envolvidas.
O recuo do HHS em relação ao “registro” e a transição para uma “plataforma de dados do mundo real” que, espera-se, respeite o consentimento, demonstra a força da mobilização da comunidade. No entanto, a vigilância precisa ser constante. É fundamental que toda política pública ou iniciativa de pesquisa envolvendo pessoas autistas se baseie na transparência, no consentimento informado, na proteção da privacidade e, acima de tudo, na colaboração genuína com a comunidade autista.
O debate sobre o uso de dados no autismo é um convite global para refletirmos: como podemos, enquanto sociedade, fomentar a pesquisa e o conhecimento para realmente empoderar e beneficiar as pessoas neurodivergentes, garantindo que seus direitos e suas vozes estejam sempre no centro de qualquer iniciativa? A resposta está no diálogo constante, no respeito mútuo e na construção de um futuro em que a inclusão seja a regra, e não a exceção.
Silvia Neri Marinho – CREFITO 3 14036-TO
Terapeuta Ocupacional, Especialista em Análise do Comportamento Aplicada e Co-founder da Clínica Formare
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